As paisagens integraram o início e o final da trajetória do pintor Iberê Camargo, apresentando signos ou lugares, constituindo espaços de superfície ou de profundidade, estruturando-se pelo vigor das pinceladas ou por planos de cor.
Ao serem retomadas na sua última década de vida, elas se apresentam mudadas, com novos elementos e implicações. Não se trata do fechamento de um círculo (o que às vezes ocorre, quando o artista cede à auto repetição), mas de um movimento em espiral que parte do exterior em direção ao centro, cada vez mais profundo, mais pontual, único.
Em seu período de aprendizado do ofício de pintor, Iberê trabalhou como desenhista técnico. A criação de paisagens se fazia presente em sua profissão: cabia-lhe desenhar pontes e praças a serem construídas, e que ele jamais veria depois de prontas. Tratava-se, assim, de lugares virtuais, à espera de concretização. Nas suas pinturas e nos desenhos que as acompanhavam, pelo contrário, o artista se prendia à representação do que via: Jaguari, Lapa e muitos outros locais, naturais e urbanos. Mas, desde o início, a força e o movimento das primeiras paisagens, bem como um empastamento prenunciador do que estava por vir, indicavam a mão do pintor, sua leitura do visível e o descolamento da literalidade da representação do real. Esse período de aprendizado compreendeu pinturas de figuras humanas, retratos, naturezas-mortas e paisagens. Em seu desejo de recriar, em suas telas, questões essenciais da história da pintura, Iberê experimentou todos esses gêneros, sem entrecruza-los. Assim, as paisagens não continham em geral figuras humanas ou animais, mas apenas um lugar. Lugar de vivências, de afetos, às vezes, de lembranças.
Depois de seus estudos com Guignard e, mais tarde, com Lhote e De Chirico, as paisagens se tornaram planas, com pinceladas menos visíveis. Uma sintetização do espaço prenunciava o que iria predominar nos Carretéis, Núcleos, Formas em tensão. Durante o longo período em que pintou essas formas, afirmando sua linguagem e consolidando seu estilo, Iberê se afastou progressivamente da figuração. Os primeiros carretéis se assemelhavam a naturezas-mortas. Com o tempo, formas e fundo passaram a ocupar o mesmo espaço, a superfície da tela. A matéria ressurgiu com intensidade, tornando essa pintura quase fisicamente tridimensional: densa e espessa, ligando figura e fundo na mesma viscosidade do plano. A pintura de Iberê foi adquirindo de forma gradual um corpo volumétrico, ocupando um espaço físico no mundo.
Em 1980, o artista retornou ao Rio Grande do Sul e retomou progressivamente à figuração, com destaque para as figuras humanas, que, de início, ocuparam um espaço de superfície, no qual se desdobravam como num jogo de espelhos, ou que dividiam com os signos do período anterior, sobretudo, carretéis, dados, setas. O corpo se apresentava então como um signo a mais, que coexistia com os outros. Os acúmulos de tinta passaram a conviver, cada vez mais, com raspagens e zonas de matéria diluída.
Na década de 1990, a paisagem ressurgiu em suas telas. Se, nos desenhos de observação, encontram-se paisagens sem figuras humanas, nas pinturas as primeiras sempre acompanham as últimas; não existem mais lugares sem corpos que lhes atribuam sentido. No começo de sua carreira, as paisagens eram representações de lugares reais observados pelo artista; nas pinturas de seus últimos anos de vida, elas foram transformadas em signos. Informadas pelas décadas em que o artista se aproximou da abstração e realizou uma pintura planar, as paisagens estão sinalizadas por indícios: algumas árvores, uma linha de horizonte, planos de cores diversas nas partes superior e inferior da tela, fazendo-nos intuir a representação do “céu” e da “terra”.
Lugar reduzido a um signo mínimo, linha de horizonte que atravessa os corpos e é por eles atravessada; lugar feito da mesma cor dos seres, da mesma matéria fluida e tênue, da mesma cor.
Paisagens de dentro – do interior do artista, projetam um mundo imaterial, à medida que o fim se aproximava; lugar dos corpos que parecem excreta-lo, como um fio aracnídeo que os vincula a algo, por impalpável que seja. Lugar último da pintura, que realizou um périplo e que chegou a seu fim: perto dos inícios, mas no fundo das coisas, tocando o mistério final da vida.
Icleia Borsa Cattani
Publicação: 2010
Número de páginas: 64